Impérios de Vento - 1ª Parte: Chuva - Fracos Vestígios de Azul
Olhou para a sarjeta, indiferente às grossas gotas da chuva que caía. Uma pequena torrente de água suja era engolida com dificuldade crescente pelo escoamento. Reparou que tinha os pés dentro da poça de água mas isso não tinha grande importância, todo ele estava igualmente encharcado. Olhou para o letreiro de néon vermelho: "O Paraíso Oculto, Casa de Lazer". Uma pequena pensão com serviço de quartos integral, pensou. Raio de eufemismo para designar um simples bordel.
- O nome é Hauser. Hellmut Hauser, com dois "l".
- Sim, está aqui um recado para si, senhor Hauser.
Agradeceu à recepcionista quando ela lhe entregou um pequeno envelope branco e saiu para a chuva do princípio da noite. Dirigiu-se para o modesto snack-bar no outro lado da rua: estava a apetecer-lhe beber um café bem quente e comer qualquer coisa.
O café sabia mal, mas por aquele dinheiro dificilmente encontraria melhor. Deu para si a olhar para o sobrescrito imaculadamente branco, rodeado pelo vapor intenso do café. Resolveu abri-lo ali mesmo, era um sítio tão bom como qualquer outro.
Um cheque de dez mil, um nome e uma morada. Suspirou resignado e contou a si mesmo a mentira de que aquela seria a última vez. Pagou a refeição e saiu para a noite húmida. Continuava encharcado até aos ossos e a chuva que teimava em cair ensopava-o ainda mais. Iria resolver tudo nessa noite.
MacArthur Parker sempre fora teimoso e não era agora que ia mudar. Apostou novamente no 36 com a calma que nunca o abandonava e fitou a pequena bola durante toda a sua evolução; a gravidade de 0.7g tornava estranho o seu movimento. Quando a pequena esfera se imobilizou, levantou-se e dirigiu-se em passos decididos para a saída do casino do paquete Eastbourn. O 36 teimara em não sair e aquele fora o seu último dinheiro.
- Sinto muito mas o seu crédito esgotou-se – disse a porta – Poderá resolver a sua situação no posto de atendimento deste piso.
- E resolver como? – disse MacArthur Parker para ninguém. Por um infeliz acaso os sistemas de cobrança da Eastbourn tinham tentado debitar a diária do seu camarote antes de ele retirar as suas coisas. Agora tinha a roupa amarrotada que trazia vestida e três vírgula cinco novos dólares em plástico no fundo do bolso. Resolveu deambular por ali, pensando num modo de escapar ao trabalho compulsivo ou de não ser atirado borda fora se fosse considerado não rentável. Nenhuma das duas hipóteses lhe dava motivos para se sentir feliz.
Nos seus passos sem destino acabou num dos muitos miradouros que a grande nave possuía. Olhou para as miríades de pontos de luz e para os novelos de gás luminoso no seu fundo de veludo negro. Como o seu futuro imediato, pensou.
- Eu diria que você está perante um grande dilema, ou será que me enganei?
MacArthur olhou para o local de onde a voz viera e sorriu quando a viu.
- A minha maior preocupação é que este grande dilema não é puramente filosófico. Diria mesmo que é rasteiramente egocêntrico.
- Do tipo financeiro? Ou será antes sentimental?
- Antes fosse...
- Gostava de o poder ajudar.
- E posso perguntar porquê?
- Pode, mas nem eu tenho a certeza da resposta. Acho que de uma forma muito singela tenho uma alma excessivamente filantrópica para as minhas posses. – gracejou ela num tom afectado – Tem algum dinheiro?
- Três vírgula cinco.
- Mas isso nem dá para abrir a porta de um camarote! – disse ela admirada, com os olhos grandes de um castanho profundo muito abertos.
- Eu sei.
Vento frio, vento frio, sopra com força e leva de mim o odor a maldição!, pensou ele. Sentia-se como se estivesse no poço mais fundo da mina mais profunda à superfície da Terra. Deus não existe, meditou, porque se existisse já há muito o teria destruído. A destruição total, onde até o mais humilde dos seus átomos seria aniquilado para sempre. A energia difusa que restaria da execução espalhar-se-ia pelo Universo, e de tão difusa nada de mal poderia fazer a ninguém.
Entrou no thinkbar para esquecer. Procurou uma cabina vazia, introduziu as moedas necessárias e programou raiva. A raiva total, contra tudo, contra todos. Deixou-se afundar no divã fofo de couro sintético e diluiu-se no negro da sua cor.
Amarelo! Amarelo de Sol, radiante, se lhe afigurava agora o que antes lhe parecera negro. Recuperara as suas roupas e todas as pequenas bugigangas que as pessoas sempre trazem consigo para tentar colar os pedaços das suas vidas.
Voltou-se para o lado esquerdo e fitou o rosto do seu anjo da guarda: Sue DeLonghi, operadora de heatsource em trânsito para outra vida. Acabada a sua comissão num planeta exterior, voltava agora ao ninho um pouco mais rica e alguns anos mais velha. A sua filantropia chegara ao ponto de o receber no seu camarote e de lhe dar o seu corpo. MacArthur Parker sentia-se melhor na sua pele mas continuava sem dinheiro no bolso, inteiramente dependente do que não sabia ser um auxílio desinteressado ou um capricho passageiro.
Olhou o relógio mergulhado na penumbra e viu que era muito cedo. No cinzento das luzes veladas sobressaía a faixa luminosa colocada sobre a cama por Sue, com a sua frase estranha e enigmática:
"Já percorri céus azuis sem fé".
Fechou os olhos e tentou dormir.
A ressaca era terrível e imediata. Hellmut Hauser levantou-se com dificuldade do divã de couro e cambaleou para fora da cabina do thinkbar. Quando o ar fresco de mais uma manhã lhe invadiu os pulmões foi demais para ele: vomitou, apoiado na parede suja do prédio, tonto como se tivesse bebido duas garrafas de vodka seguidas. Exagerara na dose, sempre exagerara em tudo...
- Arnie, dá-me qualquer coisa para comer.
- Olha quem ele é! Não estavas dentro?
- Nunca lá estive! – disse indignado, com o Arnie Gordo suspenso pela gola da camisola.
- 'Tá bem, 'tá bem! Como não te víamos há uns tempos, pensámos que...
- Tu não pensas, Arnie, só serves comida. – tornou a sentar-se e tentou ficar calmo. Tinha os nervos em franja. Aquela sessão no thinkbar só tinha piorado as coisas em vez de as melhorar.
- Traz-me também café e um analgésico. – Arnie respondeu com um grunhido.
Já tinha tentado ir para longe, onde não conhecia ninguém, mas voltava sempre a acontecer. Ali pelo menos pagavam-lhe por isso. E os pesadelos constantes, quem lhos pagava? Tomou o comprimido que Arnie lhe trouxera e comeu.
O bar do Arnie Gordo não estava cheio, nem Hellmut se recordava de alguma vez o ter visto assim. Apesar de tudo eram bastantes os clientes presentes. Fitou-os um a um enquanto bebericava o resto do café. Não se podia dizer que a frequência fosse muito selecta mas naquela parte da cidade não se podia exigir melhor.
Os seus pensamentos foram cortados pelo alarme de tempestade que soou. Todos se levantaram e correram para a rua, direitos ao abrigo mais próximo. Todos se levantaram excepto Hellmut Hauser que continuou sentado a beber o seu café no bar do Arnie Gordo. Se a morte surgisse ele dá-la-ia por bem vinda. Lá fora ouvia-se o vento assobiar e as bátegas de água faziam o ruído de um mundo a desabar. O Arnie Gordo entrou encharcado na loja e fechou as portas com dificuldade.
- Hellmut, ainda estás aqui?
- E tu, porque é que voltaste?
- Esqueci-me de colocar os protectores nas montras, ainda no mês passado tive de substituir os vidros. – espreitou para a rua pelas frestas – Agora é tarde demais para voltar para o abrigo... – lamentou-se.
- Pois é. Tarde demais para tudo.
Lá fora mil dragões uivavam de dor e raiva, e rios nasciam das pedras e cascatas jorravam do topo dos prédios. Lá fora, muito perto, caiu uma descarga formidável e o solo pareceu dançar ao seu ritmo eléctrico. Dentro do bar do Arnie Gordo, na sala deserta, Hellmut Hauser olhava para a caneca vazia que ainda fumegava e Arnie havia fugido para a cave.
Todos os anos o clima piorava e a instabilidade ditava leis. Se não fossem as culturas protegidas e as fábricas de síntese há muito que teriam morrido de fome. Muitos anos se haviam passado desde a última Primavera calma e o Verão tinha morrido nos braços de um Inverno que espalhara o seu hálito terrível por todas as estações. Os investigadores tinham desistido há muito nas tentativas de fazer recuar o manto de instabilidade e de caos que se instalara em todo o planeta. Todas as equações e modelos haviam perecido na evidência de todos os dias, no granizo dos dias de Verão e no sol abrasador do Outono.
No bramido grave que penetrava a sala tudo se confundia numa amálgama terrível de sons de destruição. Hellmut apostou consigo próprio em como o edifício não resistiria à fúria da tempestade. Como ele desejava ganhar aquela aposta!
Tinha a sensação de que era terrivelmente tarde. Tentou virar-se e não conseguiu. Tentou abrir as pálpebras e elas não lhe obedeceram. Da escuridão surgiu o medo: não sentia quaisquer cordas a prendê-lo, no entanto não conseguia mover-se. Não conseguia sentir! O medo transformou-se em pânico que a pouco e pouco se extinguiu, impotente. Uma fria calma e as hipóteses mais absurdas acorreram ao cérebro de MacArthur Parker. Sentia-se bem vivo apesar de tudo, portanto não morrera. Teria sido manietado por alguém enquanto dormia no camarote de Sue? Aquela paralisia podia ser provocada por alguma droga que actuasse ao nível do sistema nervoso, mas porquê? Porque havia alguém de querer raptá-lo, ele que nunca fora importante em nada nem para ninguém?
As horas passaram iguais para MacArthur Parker, paralisado no corpo mas não na mente, separado do mundo exterior, sem sensações, mergulhado no casulo de nada em que o tinham envolvido.
Muito tempo depois sentiu o perfume, ténue, e uma sensação de calor precedeu a sensação do contacto com lençóis. Estava numa cama e alguém se debruçava sobre ele. Já conseguia ver!
- Olá Mac. – tentou falar mas não lhe saiu nada. Tentou dar um murro no rosto lindo de Sue DeLonghi mas o seu braço não lhe obedeceu. Não percebia o que lhe tinha acontecido mas algo de muito errado se passara consigo.
Ainda chovia, mas o dilúvio já terminara. Hellmut Hauser não esperara que Arnie saísse da cave onde se tinha refugiado. Saiu para a rua e foi caminhando em passos lentos pelo quadro de desolação. Mais uma vez perdera.
A rua estava juncada de escombros, pedaços dos prédios que se haviam destacado destes, e vidros e lama que tinha vindo com a chuva. Uma calma de morte tinha caído sobre a cidade. Hellmut Hauser não viu a pedra que lhe acertou nem a mão que a tinha lançado. Alguns segundos depois chegou uma ambulância. Ignorou os outros feridos e os cadáveres dos mais azarados e recolheu o corpo inerte de Hellmut Hauser. Depois levantou voo e desapareceu no céu plúmbeo com as turbinas no máximo do esforço. Ninguém prestou muita atenção ao pequeno episódio.
(continua)
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